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Mineração

Entrevistas


Por Instituto Escolhas

23 fevereiro 2022

6 min de leitura

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Escolhas Entrevista – Larissa Rodrigues: “O Brasil virou um país garimpeiro.”

Doutora em energia pela USP, Larissa Rodrigues é responsável pelo portfólio de projetos relacionados à mineração, energia e uso de terras no Instituto Escolhas. Ela coordenou o estudo que, no início deste mês, revelou a assombrosa marca de 229 toneladas de ouro com risco de ilegalidade em circulação no Brasil.

Nesta entrevista, Larissa traça um breve panorama sobre a temática do ouro ilegal e reflete sobre como as perspectivas do país nessa área se entrelaçam com os desafios que enfrentamos globalmente.

 

Instituto Escolhas: No início dos anos 80, as imagens de Serra Pelada, com milhares de homens cobertos de lama em busca do ouro da Amazônia, impressionavam pela dimensão grandiosa do garimpo. Hoje, essa dimensão segue impactante, mas o cenário mudou. Como você vê a evolução dessa temática no país? A semente dos problemas que enfrentamos hoje já estava em Serra Pelada?

Larissa Rodrigues: De certa forma, sim. A Amazônia tem muito minério, mas o que mais se garimpa lá é ouro. Aliás, no Brasil como um todo também: primeiro ouro, depois cassiterita. Naquela época, muita gente fez fortuna garimpando na Amazônia e, à certa altura, essas pessoas começaram a investir e operar em escala similar à industrial. Com isso, pessoas que pertenciam a famílias com histórico no garimpo começaram a entrar também em outros pontos da cadeia, como a comercialização. No entanto, essa sempre foi uma atividade que aconteceu na Amazônia à margem da lei, por mais que exista um arcabouço legal que reconhece as áreas garimpeiras e os títulos de garimpo.

 

Como assim? Apesar de ter o título, de ter a reserva, o garimpo acontece à margem por quê? 

Porque a atividade acontece, e sempre aconteceu, independentemente de existir um título válido ou não. Acontece em terras indígenas, em unidades de conservação, em áreas onde a mineração não pode ocorrer. E estamos falando de um sistema bem estruturado e facilitado pela lei.

Por exemplo, uma permissão de lavra garimpeira pode ser dada a um indivíduo ou uma cooperativa. Pessoa física tem um limite de 50 hectares para garimpar e a  cooperativa, 10.000 hectares. Mas nada impede um garimpeiro de obter várias permissões. E ele pode ter um garimpo na Amazônia, morar em São Paulo e colocar outras pessoas para trabalhar lá. Isso é feito sem contratos formais de trabalho e sem direitos assegurados. E quem checa esses acordos? Ninguém. Além disso, quem trabalha no garimpo paga tudo com ouro, que funciona como uma moeda lá no meio da floresta. E se ele não quiser ou puder sair de lá para vender o ouro para uma DTVM [Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, únicas instituições autorizadas pelo Banco Central a comprar o ouro dos garimpos], com certeza vai colocar na mão de um atravessador ou de vários. Então é todo um sistema à margem do oficial.

A lei só pede que, quando o ouro chegar à DTVM, que ela esteja na mesma região da extração. Mas quem controla? Quem checa o número da lavra que o garimpeiro coloca no papel que ele preenche na DTVM, dizendo de onde veio o ouro? Os números de lavra são públicos. Qualquer um pode acessar o site da Agência Nacional de Mineração e consultar. Então mesmo que o garimpeiro retire o ouro da terra indígena Yanomami lá em Roraima, se ele quiser vender o ouro para uma DTVM de Itaituba, no Pará, é só colocar o número de uma lavra da região. 

 

Mas quando as DTVMs foram criadas lá atrás, não era de se esperar que isso fosse acontecer? 

Erramos lá atrás e erramos de novo agora, com os Decretos 10.965 e 10.966 [assinados no dia 11 de fevereiro, pelo presidente Jair Bolsonaro], que vêm acompanhados de declarações como “o garimpo é uma atividade artesanal, de pequena escala, por isso está tudo bem”. Aí, o MapBiomas mostra que a área garimpada do Brasil, hoje, é maior que a área da mineração industrial. Esses dados não se referem só ao ouro, mas atestam que o Brasil virou um país garimpeiro e não minerador. 

 

Se tivermos uma chance de corrigir a rota, falando em visão de futuro, como a mineração deveria evoluir no Brasil? 

No Brasil e no mundo, a mineração tinha que evoluir para um declínio. E o ouro é um exemplo perfeito. A gente usa ouro para quê? Basicamente, para guardar nos cofres dos bancos centrais, nos cofrinhos dos ricos do mundo. É o maior contrassenso: tirar o ouro da terra, causando todo esse impacto social e ambiental, e guardar. Se todo o ouro guardado saísse dos cofres, não precisaríamos minerar mais ouro para nada – nem para a indústria nem para as joalherias – nunca mais. Além disso, os minérios podem ser reciclados e renovados indefinidamente… Veja os casos das latinhas de alumínio.

 

Essa perspectiva do declínio começa a se impor também para outra temática do seu portfólio, a energia, correto?

Não da mesma forma. Quando se fala em energia, a parte relacionada à mineração é aquela que engloba petróleo, gás e carvão. E o problema é que a gente tira isso de uma forma errada e numa velocidade que a natureza não dá conta de repor (lembrando que consideramos essas fontes como não renováveis porque não estaremos aqui quando novas camadas de petróleo se formarem, em milhões de anos). Então um dia, sim, essas fontes vão acabar. 

A boa notícia é que temos outras opções, que além de renováveis numa escala de tempo humana, não precisam ser queimadas. Sol, vento e água têm funcionamento diferente, mas também geram eletricidade. Só que insistimos no petróleo porque ele pode ser armazenado. Cá estamos nós, de novo, gerando passivo ambiental para guardar alguma coisa. 

A gente poderia transformar tudo em renovável que, com todas as suas vantagens, ainda seria mais barato. 

 

Mas se a gente seguir na lógica do crescimento, as renováveis também não serão um problema no futuro? De que tamanho vão ser o campo eólico ou o painel solar, se a demanda energética continuar crescendo no ritmo atual?

Esse é um ponto bom, porque precisamos lembrar que a tecnologia ajuda, mas não salva. Nessa área de energia, a gente fala muito em porcentagem, mas o que faz diferença mesmo são os números absolutos, o valor que está sendo consumido de fato. Vai chegar o momento em que vamos ter que olhar para o nosso limite. O planeta Terra tem um limite. Essa é a questão. 

E esse olhar precisa partir de vários lugares. Um deles é o ambiente político, dos líderes que se encontram na COP ou em Davos e depois trazem as políticas públicas para os seus países. Por outro lado, esses mesmos líderes só vão olhar seriamente para isso a partir da intensificação da cobrança da sociedade. 

Se a gente não tomar a frente das políticas top down, vai se dar muito mal e quem vai sofrer mais são os mais pobres, como a pandemia já escancarou e a emergência climática começa a escancarar. Porque a gente, como cidadã, pode fazer algumas mudanças, reduzir consumo de carne, de água, de energia. Mas a nossa área de manobra é pequena. A política dá o contorno do nosso espaço de manobra como cidadã e consumidora. Então essas duas forças precisam caminhar juntas. E não é só por uma questão de qualidade de vida. Agora, é por uma questão de sobrevivência da humanidade mesmo.

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