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Notícias
Por Instituto Escolhas
09 maio 2020
11 min de leitura
Matéria do Ecoa aborda crise de moradia escancarada pela pandemia. Propostas para mudanças na política habitacional foram apresentadas em estudo do Escolhas
“Se ainda restava alguma dúvida, a pandemia da Covid-19 deixa claro que uma casa com condições dignas é fundamental para a saúde e a defesa da vida”, informa a matéria do site Uol – Ecoa. O texto, que mostra que 24 milhões de pessoas (12% da população) não têm casa adequada, aborda a política habitacional no Brasil, a falta de saneamento e pergunta o “que pode ser feito para refazer cidades mais dignas?”.
O Escolhas deu uma excelente contribuição a esse debate como estudo “Morar Longe: O programa Minha Casa Minha Vida e a expansão das Regiões Metropolitanas” . O trabalho permite fazer uma reflexão sobre quais serão os rumos da política habitacional no Brasil nos próximos anos, como o programa MCMV acelerou a expansão urbana e, com isso, para o agravamento dos problemas das metrópoles brasileiras tais como: a deterioração das áreas centrais, população residindo em áreas com pouca infraestrutura de serviços públicos e distante dos locais de trabalho, afetando a mobilidade urbana.
Em outro trabalho, o Escolhas apresenta propostas que também garantem melhoria na qualidade de vida e diminuição das desigualdades, o Policy Brief https://escolhas.org/wp-content/uploads/2020/01/Desafios_e_propostas_para_uma_nova_pol%C3%ADtica_de_moradia-POLICY-BRIEF.pdf .
As sugestões estão apresentadas em cinco tópicos: incentivo ao adensamento urbano, moradia como serviço, novas formas de financiamento, fortalecimento da participação dos municípios e gestão de condomínios.
Lançado em fevereiro, o Policy feito elaborado por integrantes do Grupo de Trabalho Minha Casa Minha Vida (GTMCMV), formado em conjunto com integrantes da Rede de Ação pela Sustentabilidade (RAPS) com a colaboração do Escolhas.
ECOA
ALICERCE
Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa adequada para todos é possível — e urgente
WELLINGTON RAMALHOSO
COLABORAÇÃO PARA ECOA, EM SÃO PAULO
Se ainda restava alguma dúvida, a pandemia da Covid-19 deixa claro que uma casa com condições dignas é fundamental para a saúde e a defesa da vida.
A crise atual deveria, segundo lideranças comunitárias e pesquisadores, sensibilizar a sociedade e governos do país para que a produção de moradias adequadas e o saneamento básico nas cidades brasileiras se tornassem, finalmente, prioridades. Um conjunto de medidas e políticas, que incluísse a participação de quem vive o problema diariamente, poderia contornar a crise econômica.
O novo coronavírus tornou mais alarmante a falta de acesso ao saneamento e a casas com condições que permitam o isolamento social e a prevenção adequada. Estamos falando de precariedades de favelas e cortiços e da crescente população nas ruas. Em São Paulo, dados divulgados nesta semana pela Prefeitura sugerem que as mortes por Covid-19 crescem em áreas com habitações piores. Estudos mostram ainda que, entre a população negra — que representa 75% dos mais pobres no país — a doença tem sido mais letal.
Redes de solidariedade e medidas emergenciais minimizam os impactos do avanço da doença em áreas mais vulneráveis, mas como o país chegou a esta situação e o que pode ser feito para se refazer cidades mais dignas?
Estado confinado
Aglomerações como as favelas são resultados da ausência ou tibieza do Estado e da incapacidade ou impossibilidade de o mercado de produzir cidades com estrutura ao longo da história. “As favelas são respostas que os setores trabalhadores mais empobrecidos dão à falta de política do estado e do mercado para garantir direitos fundamentais à cidade, à habitação, à infraestrutura”, afirma o geógrafo Jailson de Souza, fundador da organização Observatório de Favelas, que tem sede na favela da Maré, no Rio de Janeiro, e pesquisador da Universidade Federal Fluminense.
“A terra urbanizada bem localizada e dotada de infraestrutura tornou-se cada vez mais inacessível ao trabalhador”, explica o arquiteto e urbanista Renato Pequeno, coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação, da Universidade Federal do Ceará. Com esse valor da terra crescente, restou a uma boa parte da população a ocupação e a autoconstrução. “Na ausência de políticas públicas, a população toma a frente e busca resolver, à sua maneira, o problema habitacional”, diz ele.
A questão é que, apesar de moradia ser um direito constitucional, os trabalhadores brasileiros nunca tiveram o custo para um teto incluído como parte dos salários, explica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada.
“Nem nunca tivemos políticas públicas que contemplassem isso. O resultado é a autoprodução da moradia pelas pessoas nas piores condições, sem recursos privados e sem investimento por parte dos governos em infraestrutura”, diz ela.
O advogado e mestrando em urbanismo na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) Edilson Mineiro, assessor jurídico da UMM (União dos Movimentos de Moradia), explica que o custo de moradia é hoje inviável a uma grande parte da população. “A habitação mais barata exige uma renda superior a quatro salários mínimos. O déficit habitacional está concentrado em quem ganha até três salários mínimos. Não existe programa de mercado que seja acessível à população de baixa renda”, diz ele.
Depois de governos enfraquecerem ou paralisarem programas nos últimos anos, quem acompanha a situação de perto chama a atenção para a necessidade de o poder público sair de seu confinamento e retomar políticas de habitação. “O debate sobre habitação ficou muito prejudicado pela noção de que o estado tem que limitar sua forma de intervenção à saúde, à educação e à segurança. Isso esconde o fato de que outras políticas precisam da presença do poder público. No fundo, a gente tem que rediscutir o papel do estado”, diz Mineiro.
INVESTIMENTO FLUTUANTE
Ao longo do século passado e do começo deste, o país investiu em programas de moradia, mas de forma inconstante. O investimento no mais recente programa habitacional de grande porte, o Minha Casa, Minha Vida, veio minguando desde a crise política e econômica iniciada em 2014 e que levou à queda da ex-presidente Dilma Rousseff.
“Apesar de todas as críticas que a gente tem ao programa, ele foi, durante anos, a única política habitacional em vigor no país. No lugar dele não temos nada. Isso, junto à crise econômica, agravou a situação da moradia de 2014 para cá. Aumentou a população de rua enormemente e veio também a superocupação nas áreas autoconstruídas. A pandemia coloca tudo isso a nu”, analisa Raquel Rolnik.
Os dados dos últimos anos indicam que o problema do déficit habitacional cresceu 7% em apenas dez anos, de 2007 a 2017, tendo atingido 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017.
“Nos confrontamos com uma situação em que, para uma boa parte da população, é impossível ficar em casa. Porque, para começo de conversa, tem que ter casa. Em segundo [lugar], tem que ter casa onde dá para ficar ”
Raquel Rolnik, professora da USP e ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU
A moradia no Brasil em 2020
8 milhões de famílias
24 milhões de pessoas (12% da população) não têm casa adequada
35 milhões de pessoas 16% da população não têm abastecimento regular de água
100 milhões de pessoas 47% da população não têm coleta de esgoto
Fontes: FGV com Abrainc e Instituto Trata Brasil
Defesa da vida
Se os déficits são grandes, se a pandemia aprofunda uma crise econômica que se arrasta há praticamente seis anos e se não há sinais de que o poder público terá recursos em abundância para mudar o cenário, como voltar a produzir moradia e infraestrutura nas cidades?
Um ponto básico é que o investimento em construção e saneamento tem o potencial de induzir o aquecimento da economia. Outra premissa é que uma parte mais ampla da sociedade precisa afastar a indiferença ao problema e assumir que a precariedade da vida dos mais vulneráveis é problema de todos, algo que a disseminação do coronavírus poderia despertar.
“Ter uma situação sanitária boa em sua casa não livra você do problema enquanto perdurarem situações precárias a seu lado. Urbanizar favelas e dar condições sanitárias adequadas é o caminho mais curto para melhorar a saúde coletiva”, argumenta o professor Pablo Benetti, coordenador do Laboratório de Habitação e Forma Urbana da FAU-UFRJ (Faculdade de Arquitetura Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Em São Paulo, Edilson Mineiro viu a pandemia abrir os olhos de representantes da elite econômica para a gravidade do problema. “A UMM participa de uma rede de ajuda nos bairros periféricos. Os doadores estão percebendo que eles têm um papel importante a jogar. A gente precisaria sair dessa crise com um sistema de política urbana estruturado. Isso pode acontecer se essas pessoas que têm poder de interferir nas decisões mantiverem essa articulação”, conta o assessor jurídico do movimento.
“A questão dos recursos não é a quantidade. É a prioridade de uso. No pós-pandemia, esta é a questão que estará colocada: vamos usar os recursos públicos, escassos ou abundantes, para compensar as grandes corporações ou eles serão dirigidos para aquilo que é prioritário, que é assegurar condições de proteção e defesa da vida para quem mais precisa?”, projeta Raquel Rolnik.
O que não fazer
Ao considerar as opções a adotar, também é preciso saber o que evitar. Especialistas consideram que as soluções não podem ser impostas de fora para dentro. Projetos caros vinculados a interesses de políticos e empresários, descolados da realidade e sujeitos a esquemas de corrupção, devem ser rejeitados.
Isto também quer dizer que deve ser evitado o “bota abaixo”, ou seja, as remoções arbitrárias de moradores de comunidades. Significa ainda diminuir a dependência de programas de construção de conjuntos habitacionais de grande porte, tocados por empreiteiras, como os que foram erguidos em vários momentos e lugares, principalmente nas periferias, desde a ditadura militar.
“Baixar de Marte com um projeto desenhado a partir do nada, sem contato estreito com o território, como muitas vezes foi feito, é um erro absurdo”, diz Raquel Rolnik.
Um exemplo negativo citado por ambos é o conjunto de intervenções do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em favelas do Rio de Janeiro no período da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016.
Um caso emblemático da época, também lembrado por Jailson de Souza, foi o teleférico instalado no Complexo do Alemão.
“O PAC do Alemão custou R$ 1 bilhão e foi um verdadeiro fracasso. A população do Alemão, cuja maioria não tem acesso a saneamento, não foi ouvida. O governo estadual, em parceria com o municipal e federal, preferiu fazer um teleférico de R$ 300 milhões que não atendia as necessidades maiores dos moradores. Ele foi abandonado logo a seguir porque não era sustentável. É um absurdo esse desperdício de recursos públicos”, comenta o fundador do Observatório de Favelas.
“Temos que acabar com as intervenções decididas longe das favelas por grupos econômicos e políticos que visam apenas o interesse próprio e a própria sobrevivência. Favelas podem ser modificadas, melhoradas, transformadas desde que quem mora nestes locais tenha protagonismo na decisão”
Pablo Benetti, Coordenador do Laboratório de Habitação e Forma Urbana da FAU-UFRJ (Faculdade de Arquitetura Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Participação popular
Quem está de fora pode apresentar ideias, mas sem barrar a participação de quem vive o problema. Ou seja, quem não tem moradia adequada deve ser ouvido e ajudar a elaborar alternativas.
“Estamos entendendo durante a pandemia que as comunidades mais organizadas são os lugares onde mais se consegue montar redes de solidariedade e proteção. Isto dá uma lição muito grande. Só com a população organizada e pensando as próprias demandas é que políticas e projetos bem desenhados ocorrerão”, avalia Rolnik.
Nesse sentido, Edilson Mineiro e os movimentos sociais apontam os mutirões por autogestão, feitos pelas próprias comunidades, como opção que se fortalece em tempos de recursos escassos. “O papel do estado que a gente defende não é do estado provedor absoluto, que no Brasil favoreceu interesses privados e grandes corporações. O movimento de moradia defende há mais de 40 anos a ideia de que as pessoas podem construir as próprias casas, desde que o poder público dê condições mínimas, como terrenos e a assessoria técnica de arquitetos e engenheiros.”
Em sua pesquisa de mestrado, Mineiro apurou que, ao longo dos últimos 40 anos, mais de cem mil casas ou apartamentos foram feitos em mutirão e autogestão no Brasil. “É uma experiência relevante. Em termos de programas alternativos, o mutirão em autogestão é o mais consistente. Ele surgiu justamente numa época de crise fiscal no país, nos anos 1980. Pela impossibilidade da construção de grandes conjuntos, passou-se a construir pequenos conjuntos em que a mão de obra das pessoas ajudava a baratear o custo”, explica.
Neste modelo, o produto também tende a ganhar na qualidade final. “Normalmente são projetos de melhor qualidade, e o custo é menor. Com os mesmos recursos destinados a uma construtora para se construir um apartamento de 35 metros quadrados, é possível construir outro de 60 metros quadrados”, diz Mineiro.
Outras alternativas
Nem só de novas construções uma política habitacional deve viver. Destinar imóveis vazios, principalmente os situados em regiões centrais e com infraestrutura, a quem não tem e promover o aluguel social são outras medidas que podem ser adotadas.
Em São Paulo e outras cidades, as prefeituras vêm mapeando imóveis ociosos, mas ainda faltam programas mais efetivos para fazer valer a função social da propriedade, prevista em lei. O aluguel social, mais usado em emergências para abrigar famílias desalojadas, poderia ser disseminado em escala maior e servir de alternativa ao velho sonho da casa própria.
Para o professor Renato Pequeno, da Federal do Ceará, é essencial o poder público se fazer presente nas comunidades mesmo depois de intervenções urbanísticas, desenvolvendo programas, por exemplo, de geração de emprego e renda e impedindo que os moradores fiquem à mercê do crime e de milícias. “O enfrentamento da questão habitacional deve ser pensado em um amplo processo de planejamento que considere questões como a pobreza, a informalidade, a fome, a violência, a educação e a saúde.”
Na avaliação de Jailson de Souza, não se pode ter otimismo com eventuais medidas do governo Jair Bolsonaro, e haveria necessidade de uma ação maior de estados e prefeituras. “Certamente esse governo é ainda mais refratário aos interesses da população do que foi o governo militar. Vai ser necessário fazer investimento em habitação, em saneamento, e isso pode beneficiar a favela, mas não por um projeto estratégico do governo de garantir direitos de moradores dos espaços mais populares da cidade. Confio mais na perspectiva dos governos estaduais e municipais”, diz ele.
Edição de foto: Lucas Lima; Edição de texto: Adriana Terra; Reportagem: Wellington Ramalhoso;
Matéria publicada originalmente no site Ecoa, disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/index.htm?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=08052020-Newsletter-ClimaInfo#tematico-9
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