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Entrevistas
Por Instituto Escolhas
04 maio 2018
9 min de leitura
Entrevista do mês: Rogério Arantes
Estrutura de privilégios e desigualdades se manteve no país mesmo após Constituição de 1988
Prestes a completar 30 anos (em outubro próximo), a Constituição de 1988 foi muito importante para o avanço dos direitos em diversas áreas, como na saúde e na educação, mas também nas liberdades civis e políticas. Não conseguiu, porém, atacar de frente a estrutura de privilégios e de desigualdades representada pelo próprio Estado brasileiro, sobretudo porque não foi acompanhada pela reforma das próprias instituições. “É como se o constituinte tivesse optado pelo caminho mais fácil de distribuir riqueza sem necessariamente enfrentar os fatores estruturais da desigualdade social, muitos deles enraizados e reproduzidos cotidianamente pelo próprio Estado”, disse ao Escolhas Rogério Arantes, professor do Departamento de Ciência Política e ex-coordenador da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Para o cientista político, esses fatores colaboraram para a crise política que se instalou no país desde junho de 2013, com uma dramática perda de legitimidade da classe política. Mas não devemos esperar grandes mudanças com as eleições neste ano. “O combate à corrupção não é capaz, ele mesmo, de produzir novas lideranças, e as instituições que o lideram não podem substituir os governantes. Além disso, a classe política conseguiu manter praticamente intacto o monopólio sobre o processo eleitoral e a representação política”, avalia.
Escolhas – O Brasil completa, em 2018, 30 anos da entrada em vigor da Constituição de 1988, marco da redemocratização do país. Qual o balanço que você faz deste período?
Rogério Arantes – Como toda constituição, a nossa tem suas qualidades e defeitos, mas acho que só o fato de completar 30 anos já deve ser motivo de comemoração. Colegas estrangeiros que estudaram o conjunto das constituições que um dia vigoraram no mundo, desde a primeira americana de 1789, concluíram que a mediana de vida desses textos é de apenas 19 anos, então nós já ultrapassamos esse limiar e devemos comemorar o fato de ela ainda estar viva. O que faz uma constituição durar não é a sorte de ter sido bem escrita, mas de se manter como ponto focal da negociação política após a sua promulgação. Não deixa de ser um paradoxo: uma constituição, para durar, não pode ser rígida e precisa ser modificada de tempos em tempos. E disso a nossa é um grande exemplo, pois já foi emendada mais de 100 vezes nesses trinta anos, o que é muito para os padrões internacionais. Isso significa que os atores políticos relevantes permanecem aderidos ao pacto constitucional e fazendo política por meio da carta. E, desse modo, ela acaba durando no tempo. Por outro lado, a mesma pesquisa internacional revelou que uma constituição excessivamente emendada acaba sendo substituída por outra e a brasileira pode estar entrando nessa zona de risco.
Escolhas – Mas qual a sua avaliação substantiva sobre os avanços que a Constituição proporcionou no plano da efetivação dos direitos e da melhoria do padrão de funcionamento das nossas instituições?
Arantes – É consenso entre os analistas que, apesar de pródiga, a Constituição de 1988 foi muito importante para o avanço dos direitos em diversas áreas, como na saúde e na educação, mas também nas liberdades civis e políticas. Ela encomendou mudanças em várias frentes, e coube aos atores políticos e institucionais a tarefa de efetivá-las. Se falhamos em algumas dessas frentes, foi porque não tivemos, ao mesmo tempo, a reforma das próprias instituições. Veja-se o caso da segurança pública, que pode ser considerado o mais grave dos nossos problemas hoje. Não foi por falta de legislação que chegamos a esse ponto, mas porque o aparato policial não passou por uma reforma estrutural. Ou pior, nós aumentamos as hipóteses criminais e agravamos o combate a certos crimes, e deixamos que o sistema penal se limitasse ao encarceramento em massa no Brasil. Mas, como não reformamos as polícias, a insegurança reina por todos os lados. Também a justiça, apesar de avanços importantes, segue sendo um de nossos maiores problemas. Embora a sociedade tenha sido estimulada a procurar por ela, sua lentidão, imprevisibilidade e ineficiência fazem da justiça uma das promessas ainda não cumpridas da Constituição de 1988.
Escolhas – Em quais temas, áreas, você avalia que não fomos adiante ou até mesmo recuamos de 1988 para cá e quais as possíveis razões para isso ter acontecido?
Arantes – Apesar de alguns avanços no terreno da igualdade social, derivados da Constituição, mas sobretudo de políticas públicas recentes, o principal erro da Constituinte de 1987-88 foi não ter atacado de frente a estrutura de privilégios e de desigualdades representada pelo próprio Estado brasileiro. É como se o constituinte tivesse optado pelo caminho mais fácil de distribuir riqueza sem necessariamente enfrentar os fatores estruturais da desigualdade social, muitos deles enraizados e reproduzidos cotidianamente pelo próprio Estado. Falo das distorções da previdência social, mas também da estrutura tributária, dos privilégios de certas carreiras públicas e de Estado, dos recursos que chegam direta ou indiretamente à classe média, mas não alcançam os mais pobres e miseráveis. Um verdadeiro programa de redução das desigualdades sociais no Brasil deveria começar por uma profunda Reforma do Estado.
Escolhas – Proteção do meio ambiente e garantia da segurança pública são áreas que exigem uma ação coordenada entre governo federal, governos estaduais e municipais, para uma atuação que realmente enfrente problemas como desmatamento, violência. Isso tudo deveria acontecer dentro do chamado pacto federativo, que estabelece as regras para que esses entes se relacionem. Esse pacto federativo acontece na prática ou, como analisam alguns juristas, a complexidade dos problemas atuais do país tornou insuficiente o seu desenho feito pela Constituição de 88? O que precisa ser modificado?
Arantes – Não só nessas áreas, mas também na saúde e na educação, a dimensão federativa é crucial quando se fala de políticas públicas nesses setores. Umas mais, outras menos, todas as áreas sofrem com a falta de coordenação entre os entes federativos. É verdade que muitas políticas recentes procuraram enfrentar esse problema e alguns avanços foram alcançados, mas volto ao tema da reforma das instituições: o problema não está na complexidade das políticas, mas na dificuldade de mudar estruturas arraigadas do próprio Estado, mais interessadas na manutenção do status quo do que no êxito das tarefas compartilhadas pelos diversos entes. E note que o Brasil dispõe de um sistema de transferência de recursos da União para estados e municípios protegido pela Constituição, que torna automático o repasse volumoso de dinheiro público para os níveis subnacionais, mas nem assim avançamos rapidamente na qualidade dos serviços prestados à população.
Escolhas – A Constituição de 88 dá papel de relevo para o Ministério Público, que passa a se destacar na vida institucional do país. De lá para cá, o MP passou a desempenhar papel importante na defesa dos direitos difusos e coletivos, como acontece em relação à proteção ambiental. Qual a sua análise sobre o papel e a atuação do Ministério Público em relação aos temas socioambientais no atual cenário do país, como a questão de mineração, por exemplo?
Arantes – Minha opinião nesse aspecto talvez seja controversa. Primeiro é importante dizer que esse modelo de Ministério Público que temos no Brasil, além de bastante singular, começou a ser forjado antes da democracia e da Constituição de 1988. O MP se tornou instituição nacional, alcançando garantias, privilégios e novas funções ainda sob o regime militar. Sua legitimidade para atuar na defesa de direitos difusos e coletivos – rara, senão única no mundo – vem da Lei da Ação Civil Pública, de 1985, cujo projeto vitorioso foi escrito pelos próprios promotores, em disputa acirrada com juristas que pretendiam atribuir essa função prioritariamente a associações da sociedade civil. A lei criou um descompasso entre essas e o MP, tornando racional o comportamento que, em ciência política, nós chamamos de “o carona”. Isso é, sob a lei aprovada, mais vale à sociedade civil recorrer ao MP, para que aja por ela perante a justiça, do que agir ela mesma diretamente. E o MP reforça essa conduta chamando a sociedade civil de hipossuficiente, que no jargão jurídico quer dizer incapaz de se defender por conta própria. Em resumo, na transição para a democracia, fortalecemos uma instituição do Estado, de caráter burocrático e não representativo, para agir em nome da sociedade. Na questão ambiental, é fato que muitas ações lideradas pelo MP foram importantes nos últimos 30 anos, mas me pergunto até que ponto a judicialização das questões ambientais é sempre benéfica. No caso dos grandes acidentes que presenciamos recentemente, a judicialização arrastará a responsabilização por muitos anos. Seria importante observar na experiência internacional como os países lidam com isso e eu suspeito que encontraremos mecanismos mais ágeis e efetivos de responsabilização e reparação. E porque são mais efetivos, podem ter efeito preventivo e dissuasório sobre os agentes econômicos, reduzindo o risco ambiental.
Escolhas – A Constituição de 88 foi produto da transição política que permitiu a passagem da ditadura para a democracia, marcando a emergência de atores que depois viriam a comandar o país no plano nacional e que sempre governaram em aliança com diferentes partidos. A crise política que se instalou no país desde junho de 2013, com uma dramática perda de legitimidade da classe política, marca o fim desse ciclo? Qual a sua análise sobre o papel e a atuação do Judiciário e do Ministério Público no atual cenário do país? O que o país pode esperar do processo da eleição presidencial de 2018?
Arantes – Do ponto de vista geracional e das elites políticas que inauguraram a democracia de 1988 sim, entendo que estamos no final de um ciclo. Essa trajetória digamos “natural” foi agravada pela crise que se instalou a partir de 2013, passando pela não sedimentação do resultado eleitoral de 2014 e pela operação mais ampla e contundente de combate à corrupção política da história do país. Chegamos às vésperas da eleição de 2018 com essas duas forças se digladiando: de um lado, a classe política em busca de sobrevivência; de outro, juízes, procuradores e delegados empenhados em lavar o país a jato. É difícil prever se esse processo redundará em renovação, pois o combate à corrupção não é capaz, ele mesmo, de produzir novas lideranças e, dependendo do tipo novo que surgir, o resultado pode ser ainda pior. Por outro lado, apesar de tudo o que passamos nos últimos quatro anos, a classe política conseguiu manter praticamente intacto o monopólio sobre o processo eleitoral e a representação política. As eleições presidenciais serão disputadas pelos partidos tradicionais, o receio do surgimento de um grande outsider não se confirmou, o problema do financiamento foi contornado com dinheiro público sob controle das máquinas partidárias e, seja quem for o presidente eleito, ele ou ela terá que governar sob as mesmas regras, com o Congresso de sempre (talvez ainda mais fragmentado do que hoje) e sob a égide da Lava Jato. Num cenário como esse, os desafios serão enormes, inclusive o de manter a própria Constituição de 1988. Desse modo, é bom aproveitarmos seu aniversário de 30 anos para comemorarmos e reafirmamos nosso compromisso com ela.
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