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Entrevistas
Por Instituto Escolhas
10 setembro 2020
11 min de leitura
ENTREVISTA DO MÊS – Eduardo Fleury: Muitos dos incentivos fiscais sobre o consumo beneficiam mais as classes de mais alta renda
Para o economista e advogado tributarista, é mais fácil devolver o dinheiro para pessoas de classes de baixa renda do que continuar beneficiando a elite
Por Eduardo Geraque
A reforma tributária em discussão em Brasília tem boas chances de sair dessa vez e deve melhorar a vida do consumidor de uma forma geral, ainda que não resolva todos os problemas do país, afirma Eduardo Fleury. Ele aborda uma série de distorções que as propostas de reforma tributária em discussão tendem a consertar e explica por que alterações de temas polêmicos, como a tributação da cesta básica e dos livros, podem fazer sentido em termos de redistribuição social. Muitas das isenções atuais, afirma o especialista, estão concentrando renda.
Na entrevista, o advogado tributarista e economista com mestrado em International Taxation pela Universidade da Flórida, também explica as propostas de emendas constitucionais elaboradas pelo Instituto Escolhas com a sua assessoria técnica. As proposições Escolhas para melhorar o imposto sobre a terra e instituir tributação com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa subsidiaram o documento Nove propostas para uma Reforma Tributária Sustentável entregue por 12 instituições, incluindo o Escolhas, aos parlamentares da Frente Parlamentar Ambientalista no último dia 25 de agosto para serem apreciadas pelo Congresso Nacional.
No podcast Escolhas no Ar, Eduardo Fleury explica fala da reforma tributária e o desenvolvimento sustentável. Ouça nas plataformas, clicando aqui: Soundcloud e Spotfy
Instituto Escolhas – Como podemos definir, de uma forma geral, o objetivo da atual reforma tributária em discussão em Brasília?
Eduardo Fleury – A reforma tributária em discussão não vem para resolver a reclamação que muito se ouve de que nós pagamos muito tributos. A ideia das propostas tanto do governo quanto as que estão no Congresso, em geral, é ser neutra do ponto de vista fiscal. Nós vamos continuar arrecadando a mesma coisa que antes, mas a partir de um sistema tributário que seja mais racional, que gere menos custos indiretos para a sociedade. As empresas hoje, por exemplo, gastam muito para administrar um sistema tributário caótico como o nosso. Esses custos indiretos, ao se espalharem pelo sistema, prejudicam também o consumidor. Por isso é que existe a ideia de unificar os vários tributos que são cobrados sobre o consumo. A partir disso, se diminui a complexidade do sistema e se faz com que ele seja mais eficiente e racional. O grande objetivo dessa reforma é basicamente esse. Do ponto de vista específico, o que se pretende é unir o IPI, o ICMS, o ISS e o PIS/Cofins. A intenção, no fim do dia, é acabar beneficiando o consumidor.
Instituto Escolhas – Você concorda com as críticas que dizem que a discussão está apenas sobre a tributação do consumo, em vez de ser ampliada também para a questão da tributação da renda, das grandes fortunas e de outros setores?
Fleury – Não concordo muito com essa crítica. Porque o governo pretende, no passo seguinte, colocar esses outros temas em discussão. É sempre complicado. De um lado, muitos dizem que está se discutindo apenas isso, de outro, quando entram os outros temas, que a discussão está muito ampla. Algumas coisas até podem ser complementares do ponto de vista político. De repente, ao ajustar algo em relação ao consumo pode-se melhorar também a questão da renda. O imposto sobre renda e herança são temas que o Brasil precisa atacar. Não acho que o imposto sobre herança sirva para arrecadar dinheiro, do ponto de vista de se fazer justiça distributiva. Mas ele dá uma sinalização importante para a sociedade. Sou a favor da cobrança, embora reconheça que ela não vai fazer justiça social ou distribuir renda. Tenho bastante experiência nos Estados Unidos e olha o que a relação entre tributação e doações fez entre os americanos. Ela criou uma cultura importante no País, apesar de ser motivada por questões tributárias. Em vez de pagar tributo para o governo, as pessoas preferem criar instituições e doar. Nem sempre funciona, mas se criou na nação o pensamento da doação. No Brasil, não se tem essa visão em relação às doações, por isso sou sim a favor de um tributo sobre isso. Quanto ao imposto de renda, temos vários problemas para resolver, entre eles o da tributação em faixas mais elevadas de renda.
Escolhas – A atual proposta de reforma tributária, na sua avaliação, vai resolver quais distorções?
Fleury – Há uma série de distorções que serão atacadas. A primeira delas é regional. Imagine que vou montar uma fábrica em algum Estado do Nordeste, ou em qualquer outra região do país, apenas para exemplificar. E vou fazer isso porque lá terei incentivo fiscal. Você produziu as peças em São Paulo e levou elas para a Bahia, montou o carro lá e trouxe ele de volta. Não me parece um processo muito racional. O correto, que muitos países fazem, é eventualmente transferir dinheiro para o Estado da Bahia, criar mão de obra eficiente e qualificada lá, com treinamento e educação, além de construir boas estradas e uma logística legal. Ou seja, são criadas vantagens econômicas para uma fábrica ir se instalar lá. A política para atrair investimentos tem que ser descolada do imposto. Tem que se saber quais são exatamente as vocações regionais para que não seja forçada uma situação só por causa da isenção fiscal. A reforma atual pretende reduzir isso também.
Escolhas – Existem também as distorções sobre o consumo. Como elas serão resolvidas?
Fleury – Muitos dos incentivos fiscais sobre o consumo beneficiam mais as classes de mais renda. Por exemplo, o caso da cesta básica. Estudei isso recentemente. Se você colocar uma alíquota de 25% sobre os alimentos, porque alguns têm isenções, vai gerar um aumento de preço, é verdade, mas ele será muito pequeno em relação ao que está sendo falado. Nos nossos cálculos para o Banco Mundial estamos chegando a valores, no caso de frutas e verduras, onde o impacto é maior, de 14%. Outros chegam a impactos de 2% a 5%. Não há dúvida, é um impacto, claro. O problema é que o governo deixa de arrecadar de R$ 17 bilhões a R$ 18 bilhões por ano com as isenções sobre os alimentos. Quando você analisa a Pesquisa de Orçamento Familiar e você vê o consumo das pessoas, se verifica que o dinheiro que deixou de ser arrecadado vai quase 60% para a classe média e alta. Estamos falando da minha picanha e da minha massa italiana. Tudo bem. Pode-se argumentar que os outros 40% ainda vão para as classes de mais baixa renda. Mas estamos falando de famílias que ganham por volta de R$ 4 mil a R$ 5 mil. Vamos considerar que são mesmo classes de mais renda, mas como se pretende resolver isso pela reforma tributária? Podemos cobrar imposto de todo mundo e usar um sistema que já existe, que é o da nota fiscal paulista [de devolução do imposto] para corrigir as distorções. Temos uma tecnologia tributária que não existe em nenhum lugar do mundo, até porque o nosso sistema é muito complicado mesmo. Portanto, a partir do CPF na nota ou por meio de um QR code na nota você vai conseguir devolver o dinheiro para as pessoas inscritas em programas sociais de transferência de renda. Além de devolver o dinheiro do imposto dá até para adiantá-lo para as pessoas se for o caso.
A questão dos livros, como está prevista na proposta da criação da CBS [contribuição sobre bens e serviços a partir da junção do PIS/Cofins] segue o mesmo raciocínio. Os dados mostram que quem ganha acima de R$ 15 mil por mês, e que é rico em termos de Brasil, é responsável por 72% do consumo de livros. Quem ganha até R$ 5 mil compra 5% dos livros. Ou seja, não é a isenção de tributo que resolve esse problema. A questão é outra. Mas uma vez, nesse caso, estou concentrando renda. Não estou falando em tirar a isenção do livro, mas precisa pensar um pouquinho. É mais fácil devolver o dinheiro para a pessoa que comprar o livro e tiver inscrita nos programas de renda do que continuar beneficiando as classes de mais alta renda. Há o costume de se jogar muito a culpa no tributo, mas temos que tratar os diferentes como diferentes.
Escolhas – E a CPMF é um bom tributo? Ela resolve alguma distorção?
Fleury – Ele é um bom tributo para jogar fora, risos. Ele não se sustenta por várias razões. Ele promete uma alíquota baixa para arrecadar muito, mas ele não consegue fazer isso. Ele não entrega o que promete. Para arrecadar mais dinheiro você vai ter que aumentar a alíquota, o que causará distorções de várias formas. Uma delas é aumentar o custo do dinheiro. Em alguns financiamentos esse valor poderá quase dobrar. Demorou tanto tempo para começarmos a ter uma faixa de juros razoável, um pouco mais racional, e agora a gente vai aumentar esse custo? Essa é uma das distorções importantes que a CPMF cria.
Escolhas – Você assessorou o Escolhas na elaboração de propostas para tornar a reforma tributária mais ambientalmente sustentável. Que propostas foram essas?
Fleury – É importante olharmos para a reforma tributária e enfrentarmos, até com mecanismos que de certa forma a Constituição já prevê, essa questão. Um deles é o caso do imposto seletivo. Como regra geral, e embora com um fim um pouco arrecadatório, ele visa inibir comportamentos que dão prejuízos para a sociedade. A poluição, por exemplo, se encaixa perfeitamente nesse contexto. Ela tem um custo para toda a sociedade que não acaba aparecendo no preço. O fabricante de algum produto que polui não é impactado. Então, com um imposto seletivo, você consegue ajustar o preço de um determinado produto em um nível mais verdadeiro. Dentro da teoria econômica, você está embutindo a poluição dentro do custo do produto. Além de desestimular o consumo também, porque as pessoas vão perceber que aquilo está realmente mais caro. Nós estamos propondo uma contribuição, que é um tributo também, que vai agir exatamente na emissão de gases de efeito estufa. Como observador tributário, tenho visto em outras partes do mundo, inclusive na Europa onde o mercado de carbono é mais estruturado, que ele não está conseguindo, sozinho, dar conta do problema. Por isso, a característica dessa contribuição é usar o dinheiro arrecadado para o meio ambiente. Se conseguirmos sucesso nessa tributação a sua arrecadação vai até diminuir, na verdade. O valor arrecadado não vai financiar os governos, mas as empresas ou instituições que vão trabalhar para diminuir as próprias emissões de gases de efeito estufa. Vai custear o investimento.
Escolhas – Em termos práticos, estamos falando de um imposto sobre a gasolina. Ele será pago na bomba pelo consumidor?
Fleury – Basicamente você vai trabalhar com a gasolina, mas, em alguns casos, você pode tributar a própria emissão de gases. Deixamos na proposta as duas possibilidades. No caso do combustível você tributa a gasolina na bomba. Ou simplesmente, se você tiver outro setor poluente, você pode ir direto na fonte da emissão, medi-la e tributá-la. Uma fábrica moderna que gera pouca poluição vai se beneficiar em alguns casos. É verdade que se corre o risco de se colocar um pouco mais de complexidade no sistema com isso, ao contrário do que a reforma tributária de uma forma geral pretende. Mas é interessante dizer que esse mecanismo, apesar de mais complexo, passa a ter uma função. Um dos problemas da nossa complexidade hoje é que ela não tem uma função muito clara. Pode-se fazer um desenho simples desse tipo de tributação assim como outros países têm.
Escolhas – Além da tributação da gasolina, outro mecanismo envolve o ITR (Imposto Territorial Rural)?
Fleury – O ITR é um imposto ineficaz. Na prática ele nunca funcionou. Arrecada pouquinho e não é efetivo, por vários motivos. A nossa proposta propõe dividir o ITR em dois na prática. Vamos ter o IPTR (Imposto Sobre Propriedade Territorial Rural) e o atual ITR em si. Nos Estados Unidos, por exemplo, o imposto rural e o urbano, em relação à propriedade são a mesma coisa. Fica até difícil você conseguir separar dados de arrecadação dos dois. O que a gente mudou é que a arrecadação sobre a propriedade, hoje com a receita federal, passa para os municípios. Porque, em princípio, eles vão ter muito mais interesse em arrecadar mais. Claro que isso pode influenciar no preço da terra, assim como ocorre com o IPTU nas cidades. Mas tentamos limitar a alíquota, de 1% a 3%, algo bem racional. Depois, nós separamos uma outra contribuição, que tem de ser muito bem implementada, que seria o ITR que se tem hoje. Esse imposto seria baseado no uso da terra em termos de produção propriamente dita e no uso sustentável da terra. Isso poderá até ajudar o agricultor. Em termos bem simples, você coloca para as propriedades duas metas em termos de área: 50% de produção e 50% de uso sustentável com a manutenção de florestas. Cumpriu as duas metas, zero de imposto. O objetivo não é arrecadar, mas fazer com que ele funcione a favor do meio ambiente. Até coloquei, pessoalmente, um mecanismo a mais. Se os métodos de produção forem sustentáveis também, no caso agricultura orgânica ou algo semelhante, o agricultor vai ganhar uma nota maior do lado da produção. Na prática, é como se ele tivesse já uma certificação e isso poderá ser mostrada ao exterior, por exemplo, em mercados que estão dando muito valor para produções mais sustentáveis. Claro, todas essas definições terão que ser estabelecidas pelo legislador.
Escolhas – Esses dois mecanismos propostos, então, se aprovados e bem implementados, vão deixar a reforma tributária mais ambientalmente e socialmente ajustadas?
Fleury – Ambientalmente sim. Na questão social precisa ter mais cuidado, porque nem tudo é culpa do tributo. Aqui nos Estados Unidos [na entrevista, de forma remota, Eduardo Fleury estava em Chicago], hoje, nós temos dois mundos basicamente. O caixa do Walmart e o grupo de pessoas de renda alta e muito bem formada. Mas isso é fruto de um processo econômico onde entra desde a China até outras variáveis. Não tem nada a ver com tributo. O papel do tributo também é mostrar que se faz justiça. Vai tributar dividendos? Eu acho que deve se diminuir o tributo do lado na empresa e aumentar nos dividendos, não há dúvida, isso deve ser feito. Agora, principalmente no Brasil, essa tributação sobre os dividendos vai arrecadar muito pouco. Não vai dar nem para sustentar o programa social que o governo quer manter. Tributar a terra, por exemplo, é perfeitamente normal. A nossa proposta, ao dar um olhar mais racional para o uso dessa terra, é fundamentalmente mais sustentável.
Ouça entrevista no podcast Escolhas no Ar: “Episódio #12 – Qual papel da Reforma Tributária para o desenvolvimento sustentável ”
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