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Entrevistas


Por Instituto Escolhas

16 novembro 2020

13 min de leitura

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ENTREVISTA DO MÊS – Ana Bastos: Combate à ilegalidade é desafio para o modelo das concessões florestais

Desburocratizar a regulação e aumentar a conscientização são outros fatores-chaves para ampliação do modelo

Por Gilse Guedes

A engenheira química, Ana Leite Bastos, está na linha de frente de defesa do manejo florestal sustentável. Para a CEO da Amata Brasil ¹, o modelo das concessões florestais pode ser um grande aliado para deixar a floresta em pé e uma fonte permanente de geração de riqueza para as comunidades locais, impulsionando a bioeconomia na Amazônia.

Para Ana, porém, a consolidação deste modelo necessita ainda de medidas em três sentidos: simplificar a regulação, combater a ilegalidade e aumentar a conscientização da sociedade em torno de sua importância como instrumento de política ambiental – o que, por sua vez, possibilitaria a atração de novos investimentos e a criação de linhas de financiamento específicas para as concessões florestais.

“Para a gente destravar o espaço da Bioeconomia, que não é só a madeira, é necessário um esforço dirigido de pesquisa e desenvolvimento, que a gente deveria começar já”, afirma Ana Bastos, que faz parte da Força Tarefa sobre Concessões Florestais da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura ².

Nesta entrevista ao Instituto Escolhas, Ana comenta ainda o trabalho da Coalizão para promover uma atualização do marco legal, defende o valor das concessões como estratégia de combate ao desmatamento e fala a respeito da “madeira engenheirada”, um produto tecnológico que a Amata ambiciona comercializar em larga escala no Brasil, gerando benefícios na área da construção civil.

No podcast Escolhas no Ar, Ana Bastos explica ainda o que é preciso para que as concessões florestais ganhem escala no Brasil, quais são os gargalos e quais os benefícios. Ouça pelo Spotify ou SoundClound.

 

Instituto Escolhas – Em 2006, a Lei de Gestão de Florestas Públicas (11.284/2006) definiu um marco legal para o manejo florestal sustentável e regulamentou as concessões florestais. Os números publicados no primeiro Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF), em 2007, indicavam uma área de 43,7 milhões de hectares legalmente passíveis de concessão. Passados 14 anos, as concessões na Amazônia totalizam somente 1,050 milhão de hectares. O que falta para que as concessões florestais se consolidem como alternativa econômica de geração de renda a partir da manutenção da floresta em pé?

Ana Leite Bastos – Eu vou dividir a minha resposta em três blocos. O primeiro é mais de cunho processual. Para você colocar uma área em concessão, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) precisa cumprir determinadas etapas regulatórias. Uma etapa muito importante é o inventário florestal para conseguir dizer o que há, efetivamente, de espécies florestais numa determinada área. Esse é um trabalho muito técnico, custoso e às vezes demorado. Um dos caminhos para ganhar escala é refletir sobre as formas do inventário, do pacote regulatório, para que seja um pouco simplificado. É necessário reduzir a complexidade regulatória. A gente precisa descobrir como alargar o funil desta etapa inicial regulatória.

Na sequência, eu acho que tem um segundo bloco, que é muito importante e precisa ser discutido. Uma vez que a gente coloca uma área em concessão, como é que a gente cria mecanismos para lidar com a ilegalidade que permanece presente? Para ganhar escala, é necessário que se tenha uma maior discussão sobre papéis e responsabilidades de todos os agentes. Que se tenha um pouco mais de clareza sobre como vão ser trabalhadas questões voltadas à infraestrutura para que a concessão tenha condições de ser competitiva nesse contexto de ilegalidade que existe há muito tempo na região.

Por fim, há um trabalho muito importante. Eu vou batizar de conscientização geral. Quando a gente fala em concessões florestais, quantas pessoas efetivamente sabem o que um concessionário de uma dessas áreas faz? Quando a gente fala em manejo florestal sustentável, quantas pessoas entendem o que isso quer dizer? Eu sou nova neste setor. Me juntei à Amata há três anos e foi um aprendizado muito importante perceber que o manejo florestal sustentável é um trabalho extremamente técnico, uma escolha fundamentada em princípios tecnológicos para que a floresta permaneça em pé. Numa gestão de baixo impacto, o concessionário retira da floresta menos de três árvores por hectare. Como se eu tivesse um campo de futebol repleto de uma floresta densa e, daquele espaço, eu tirasse menos de três árvores. Realmente, quando a gente fala que as concessões trabalham no modelo de deixar a floresta em pé, a floresta, de verdade, fica em pé. Eu acho que o grande público não entende isso. É necessário conscientizar a ponta de consumo sobre os benefícios dessa madeira.

Escolhas – Você é uma das integrantes da Força Tarefa (FT) de Concessões Florestais da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura que está pensando em novas propostas para conferir maior viabilidade ao modelo de negócio das concessões florestais. Essa FT reuniu diferentes segmentos interessados no tema, como concessionários, engenheiros florestais, ambientalistas e advogados. Entre as sugestões de alteração propostas à Lei, quais você destacaria para tornar as concessões florestais mais atraentes para o setor privado?

Ana Bastos – Eu vejo dois pontos muito importantes. Um deles é o pedido de inclusão de revisões. Um contrato de concessão pode ter a duração de até quarenta anos. Uma das propostas que considero essencial é a previsão legal de revisão dos termos do contrato a cada cinco anos com base naquilo que o concessionário observou, mapeou e estudou da realidade concreta daquela floresta que está em concessão. Com isso, você ganha uma segurança jurídica. O segundo ponto fala de um tema do futuro. As florestas, de uma maneira geral, têm um papel importante na captura e estoque de carbono. A gente vê no mundo de um hoje uma necessidade de a gente ter mecanismos para capturar carbono, para compensar, para mitigar. Nesse projeto de lei há uma sugestão de inclusão da venda de carbono nas áreas de concessão. Isso fala muito dessa nova economia que está por vir.

Escolhas – Quais as proteções que devem ser ofertadas para que os concessionários possam atuar com maior segurança em regiões, como na Amazônia, onde há ainda muitos problemas com a exploração ilegal de madeira?

Ana Bastos – Não tenho dúvida de que o combate à ilegalidade é um dos temas centrais e é um dos mais complexos. É muito importante um diálogo, um acordo. Eu acho que é importante que os instrumentos legais e jurídicos deixem mais claros os papéis do poder concedente, das autoridades, do concessionário, das comunidades. Quando a gente fala de proteção, cada realidade vai exigir uma solução diferente. Eu não ouso dizer que existe uma solução única que atenda a todas as situações. Mas o que eu digo é que, antes do concessionário assumir o seu papel, os papéis e responsabilidades do governo, da comunidade e das organizações não-governamentais devem estar muito claros e bem pactuados. Na região amazônica em área de concessão há a atuação do ICMBio, Ibama, Polícia Federal e, em vários casos, do Ministério Público. Quando a gente fala em proteção no sentido amplo, a palavra é coordenação, que também envolve o concessionário e a comunidade. A comunidade é um ator importante no combate à ilegalidade, porque está, normalmente, bem próxima à floresta, em áreas aonde o ilegal atua e, por isso, ajuda nesse processo de combate.

Escolhas – Quais são os benefícios de um sistema eficiente de concessões florestais para o desenvolvimento de uma Bioeconomia e até mesmo para o combate ao desmatamento ilegal e à grilagem de terras?

Ana Bastos – Talvez aqui valha a pena trazer um pouco sobre como funciona a lógica da concessão para que a gente enxergue onde é que está este valor. Quando o concessionário acessa uma área de concessão florestal, a primeira coisa que ele vai ter de fazer é dividir esta área em unidades de produção. Por exemplo: se você tem uma unidade de 50 mil hectares e você divide em 25 unidades de produção, cada unidade de produção vai ter 2 mil hectares. O que isso significa? Isso significa que ao longo de 25 anos, uma vez por ano, você vai pegar uma dessas unidades de produção e vai extrair 2 árvores por hectare. Duas árvores por hectare, em um hectare que tem centenas de árvores, o que acontece? Aos olhos de um leigo, é como se a floresta estivesse praticamente intacta. Você vai fazendo uma rotação ao longo de 25, 30, 40 anos. O que acontece é que você torna este recurso inesgotável. É uma geração permanente de riqueza. Vinte e cinco anos depois, a floresta está lá. Nesse período de 25 anos, por exemplo, a floresta se recuperou, outras árvores nasceram, algumas se desenvolveram, espécies que hoje não são comerciais daqui a 25 anos podem ter encontrado o seu mercado.

Nesse período, você gera renda para comunidade, gera emprego para quem está no entorno. Para lidar com ilegalidade e com grilagem, eu tenho de criar uma solução econômica para quem está na região. Você tem geração de riqueza que não se esgota. O desmatamento esgota o potencial da floresta. Na hora em que você desmata, não tem mais floresta e você tem de substituir por uma outra atividade. Na medida em que, se você tem uma floresta de pé gerando uma renda sustentável para uma comunidade, você abre espaço para desenvolver ativos que podem servir para outros produtos, como os medicinais e os cosméticos.

Escolhas – Em relação às oportunidades econômicas no âmbito da Bioeconomia, que produtos e serviços florestais podem fazer parte do modelo de negócio das concessões florestais?

Ana Bastos – O ponto central das concessões florestais, na sua grande maioria, tem a ver com os produtos madeireiros. Cada edital de licitação traz temas que podem fazer parte daquela concessão. Isso é um pouco uma escolha técnica, mercadológica, dependendo de onde a concessão está localizada. Por exemplo: pode ter serviços turísticos, pode ter uma determinada estrutura para visitação ou para pesquisa. Há produtos não-madeireiros que podem fazer parte do escopo. Por exemplo: a exploração de castanha do Pará, que é um produto não-madeireiro. O concessionário tem isso previsto no contrato, mas como uma das atividades que deveriam gerar renda para comunidade. O concessionário tem o dever, o desafio, a obrigação, a oportunidade de criar um programa de coleta de castanha, mas quem coleta a castanha e fica com a renda é a comunidade. Quando a gente fala em Bioeconomia, acho que a gente está só começando a engatinhar em relação ao que a floresta pode oferecer. Talvez ficasse uma provocação: será que os concessionários, juntamente com o poder concedente, não deveriam abrir uma linha de pesquisa mais estruturada? O que eu sinto é que a oportunidade está lá. Com essa biodiversidade, há coisas interessantes de valor econômico? A resposta é: com certeza. A questão é a pergunta “qual?”. A gente ainda é carente dessa informação. Para a gente destravar o espaço da Bioeconomia, que não é só a madeira, é necessário um esforço dirigido de pesquisa e desenvolvimento que a gente deveria começar já.

Escolhas – Do ponto de vista da exploração de produtos florestais, a Urbem, uma empresa da Amata, tem trabalhado com um produto tecnológico denominado de “madeira engenheirada”. O que é a “madeira engenheirada” e quais são as suas vantagens?

Ana Bastos – A “madeira engenheirada” passa por um processo industrial e que, ao final, lhe confere características de umidade, resistência mecânica-estrutural, resistência à fogo, ao ataque de cupins. É muito diferenciada da madeira original, da madeira verde, que não é industrializada. O processo é mais ou menos assim: você pega a tora original e serra em lamelas, que são coladas em diferentes configurações. Se elas são coladas umas sobre as outras, a gente chama isso de “Glulam”, que é uma Madeira Lamelada Colada. Uma vez colada, ela passa por um processo de prensa e de estufa, recebe alguns químicos para proteger do ataque do fogo e de insetos. Fica com características muito parecidas aos pilares e às vigas de aço e concreto usados na construção civil. Têm o mesmo desempenho. Para um outro produto de “madeira engenheirada” [Madeira Lamelada Colada Cruzada ou CLT] não se faz a colagem uma sobre a outra. É feito no modelo perpendicular, colando em diferentes camadas com combinações cruzadas. Você produz industrialmente painéis de três metros por 12 metros que acabam funcionando como uma grande laje, que têm um desempenho numa determinada obra equivalente a uma laje de concreto e aço.

A “madeira engenheirada” tem vantagens de várias naturezas. Uma delas é que, uma vez produzida, é possível fazer alguns recortes e a usinagem de precisão na fábrica. Você constrói uma grande peça de Lego. A praticidade traz alguns benefícios. Uma obra que demoraria 12, 18, 24 meses para ser construída pode ser construída em até 40% menos tempo. Outra grande vantagem está ligada à captura de carbono. A madeira é um grande armazenador de carbono. Outros produtos que são usados na construção civil nesta combinação de concreto e aço têm um perfil de emissão de carbono muito elevado. O setor de construção civil globalmente é responsável por quase 1/3 das emissões de gases de efeito estufa. Com a “madeira engenheirada”, uma obra que tipicamente emitiria carbono passa a capturar carbono. A gente vê na “madeira engenheirada” um produto que está vindo para ficar. É uma tecnologia que nasceu na Europa e que está se espalhando pelo mundo inteiro.

Escolhas – Você poderia listar os desafios tecnológicos e até mesmo regulatórios para que a “madeira engenheirada” receba, por exemplo, acreditação do Inmetro e conquiste outras vantagens, como a cobertura pelo sistema de seguros?

Ana Bastos – O pedaço maior do desafio estava presente há vinte anos, quando nasceu na Áustria e as primeiras edificações feitas com esse material. Eu não estou dizendo, com isso, que não há desafios. Mas a gente tem a nosso favor vinte anos de experiência fora do país. Quando a gente fala das seguradoras, claro que no Brasil ainda não há edificações em número suficiente para dizer que as seguradoras, principalmente brasileiras, já tenham esse conhecimento da tecnologia. Mas no mundo existem algumas centenas de edificações, por exemplo prédios, com esta tecnologia, que estão seguradas. O Brasil também se beneficia da presença de várias seguradoras internacionais que já passaram por este processo lá fora e que não teriam por que não seguir a mesma lógica no Brasil. Se funciona bem num país, por que não vai acontecer no outro? Esse é um desafio que, no tempo, será superado. Na parte regulatória, eu vou falar no sentido amplo. No Brasil, há uma vantagem. Qual? A norma brasileira para edificações, de maneira geral, nasceu e foi lastreada originalmente nas normas europeias. É justamente na Europa onde a regulamentação está mais desenvolvida. Enquanto no Brasil não tem as normas técnicas completamente revistas e ajustadas para a “madeira engenheirada”, eu posso me lastrear no Eurocode 5, que trata disso tudo e que pode ser usado no Brasil. Seja no lado do seguro, do financiamento ou regulatório, existe um caminho sólido e com segurança jurídica para a gente trazer esta tecnologia para o Brasil.

Escolhas – Quais são as madeiras no Brasil que já são aptas para esse tipo de aproveitamento e o que precisa ser feito para que as nossas espécies tropicais, em especial da Amazônia, possam ser aproveitadas?

Ana Bastos – As madeiras que já foram testadas, usadas, construídas, melhoradas e aperfeiçoadas foram as coníferas. A conífera que temos hoje mais parecida com as da Europa e dos Estados Unidos é o pinus: uma madeira que tem potencial para o processo de “madeira engenheirada”. Quando a Amata começou a trabalhar o tema da “madeira engenheirada”, a gente fez algumas escolhas estratégicas. Existe um desafio de discutir e engajar arquitetos, engenheiros, incorporadoras e construtoras sobre um material que eles não conhecem. Então vamos começar com uma madeira que já é conhecida e comprovada, com um maquinário de produção que já é conhecido e comprovado, com normas que já avaliaram esse material por 20 anos. Está nos nossos planos iniciar um trabalho de pesquisa e desenvolvimento. Por quê? Porque o Brasil tem condições únicas para floresta. Seja com pinus, seja com eucalipto, seja com nativas. A única coisa que eu acho é que esse esforço é de médio prazo. No curto prazo, o pinus está alguns anos na frente.

 

¹ AMATA BRASIL é uma empresa que atua há mais de 15 anos na gestão sustentável de produção e comercialização de produtos provenientes da madeira

²  A Força Tarefa da Coalizão sobre concessões florestais, capitaneada por Ana Bastos e Leonardo Sobral (Imaflora), contou com a participação de Roberto Waack (Arapyaú), Tasso Azevedo (Mapbiomas), Paulo Barreto (Imazon), Justiniano Neto (Confloresta), Fábio Olmos (Permian Global) e Jeanicolau Lacerda (Avaplan), entre outros. O Instituto Escolhas atuou como facilitador deste processo de construção coletiva e consolidou as sugestões em um Projeto de Lei para atualizar o marco legal das concessões florestais.

 

 

 

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