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Entrevistas


Por Instituto Escolhas

06 fevereiro 2018

8 min de leitura

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Entrevista do mês: Neca Setubal

Estudos econômicos podem ajudar a superar falta de apoio à questão ambiental

Segundo a socióloga e educadora Maria Alice Setubal – Neca Setubal -, falta quem puxe de verdade o tema da sustentabilidade no país. “Os ambientalistas contam com pouco apoio institucional e financeiro e talvez não tenham feito a lição de casa que o Instituto Escolhas está fazendo agora: quanto custa implantar o desenvolvimento sustentável, qual o impacto econômico da mudança da matriz energética, do desmatamento zero? Estudos como esses são um dos caminhos para a superação dessa falta de apoio para a questão, pois mostram a viabilidade econômica da mudança de paradigma”, diz. Doutora em psicologia da educação, Neca preside os conselhos da Fundação Tide Setubal, organização familiar que atua na Zona Leste de São Paulo, e do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), associação dos investidores sociais do Brasil. É também fundadora e membro do conselho do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, que desde a década de 1980 busca a melhoria da qualidade da educação pública no país. Para ela, para termos um salto de qualidade educacional no Brasil, é preciso criar políticas específicas para públicos diferentes. “Não dá para ter a mesma política para todos com a nossa diversidade. Municípios mais pobres e locais mais vulneráveis deveriam ter melhores professores e equipamentos.”

Escolhas – O Gife realizará em abril deste ano seu 10º Congresso, com o tema Brasil, democracia e desenvolvimento sustentável. O que motivou a escolhas desse tema?

Maria Alice Setubal – No congresso passado, o tema foi o sentido público do investimento social privado e levantou a régua do debate para além da discussão apenas das práticas de cada fundação. Nosso desafio foi encontrar um assunto que avançasse ainda mais. Devido à conjuntura do país neste ano, sobretudo por ser um ano eleitoral, pensamos em uma agenda que conectasse os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a questão da democracia, debatendo o papel dos investidores sociais privados nesse momento. Em relação ao desenvolvimento sustentável, queremos trazer uma visão mais ampla e o recorte dos ODS tem pautado muito a questão da pobreza. No eixo meio ambiente, as empresas saíram na frente das fundações. Em relação à democracia, o congresso vai pensar não apenas no recorte do investimento social privado, mas procurar agregar as organizações da sociedade civil, para que sejam ágeis, plurais e muito conectadas, e para construir tecidos sociais mais fortes, que consigam chegar no nível das políticas públicas.

Escolhas – Vivemos um momento de falta de diálogo, no qual posições diferentes facilmente tornam-se antagônicas. Como uma organização como o Gife, que reúne investidores sociais privados de áreas tão diferentes, pode ajudar a promover o diálogo e a proposição de soluções mais consensuais para que o Brasil se torne um país mais justo e sustentável?

Setubal – Queremos que o Gife seja um espaço de discussão. A organização não vai se pronunciar sobre o ajuste da Lei Rouanet, por exemplo, mas criar uma rede de associados para discutir os temas e se colocar como mediador do debate. Vamos buscar o diálogo sem entrar na questão partidária, mas com olhar plural e da sociedade civil.

Escolhas – O Brasil é um país de muitas desigualdades econômicas e sociais, como de acesso à educação, saúde, cultura, moradia, saneamento. Por outro lado, as questões ligadas à sustentabilidade, como as mudanças climáticas, ainda que atinjam a toda população, tendem a alcançar os pobres mais fortemente. Como superar as desigualdades sem que a destruição do meio ambiente seja vista como a única forma de propiciar renda para alcançar o desenvolvimento do país?

Setubal – Desde a Rio-92, os avanços nessa área foram grandes, houve grande sucesso das organizações que lidam com a temática. Mas, desde o governo Dilma, temos um grande retrocesso. Acho intrigante que, embora tenham acontecido avanços, há parte da esquerda que não se apropriou dessa pauta e, do outro lado, também os ruralistas são contra. Mas também não são todos. É uma tema que acaba não tendo quem puxe de verdade. Os ambientalistas contam com pouco apoio institucional e financeiro e talvez não tenham feito a lição de casa que o Instituto Escolhas está fazendo agora: quanto custa implantar o desenvolvimento sustentável, qual o impacto econômico da mudança da matriz energética, do desmatamento zero? Estudos como esses são um dos caminhos para a superação dessa falta de apoio para a questão, pois mostram a viabilidade econômica da mudança de paradigma. Acredito que as empresas estão à frente em relação aos ODS, porque vejo que estão atuando em áreas como uso da água e reciclagem. Isso talvez aconteça porque já calcularam, em seus nichos, os custos econômicos e saibam que o investimento vai se pagar. O mercado europeu, por exemplo, exige produtos ambientalmente corretos. Só vamos superar a dicotomia desenvolvimento versus meio ambiente e caminhar em direção a uma economia de mais baixo carbono a partir de dados relativos a economia e custos. Vivemos um momento de transição de paradigma e não está claro para onde se vai. Uma das apostas é a economia de baixo carbono, o cuidado com o meio ambiente, mas isso desmobiliza muitos interesses, como a indústria do carvão e do petróleo, que lutam pela visão de sociedade que defendem. Há busca de espaço de poder e de visão de sociedade. Por outro lado, o grande público, que não está diretamente ligado a esses setores, tem medo de mudança e do que pode acontecer: ‘Agora que consigo comprar meu carro, me dizem que não posso? E meu emprego? E minha lojinha?’. Essas mudanças mexem com muita coisa. Não são simples. Acredito que vamos encontrar o caminho, mas vivemos as dores da transição.

Escolhas – O que precisa ser feito para que o investimento social privado contribua de forma mais decisiva para um desenvolvimento sustentável que leve em conta a superação das desigualdades?

Setubal – O último censo do Gife (do final de 2017) mostra que 80% das fundações do Gife apoiam educação, 60%,os jovens, depois vêm renda, cultura e os demais. Meio ambiente não está no topo e, quando recebe investimentos, são muito voltados para educação ambiental. Estamos querendo que o congresso ajude a ampliar as fronteiras tradicionais de investimento privado com temas mais contemporâneos, como cidade, mudança climática, água, identidade racial e de gênero, ciência. Hoje, apenas 2% dos associados do Gife têm recorte racial, enquanto nas empresas é percentual é de 8%. Queremos puxar esses novos temas que dialogam com desigualdades para os associados, buscando sempre a equidade (incluindo a de raça e a de gênero). Além disso, houve um avanço do lado do investimento social privado em buscar resultados mais concretos, com uma atuação mais profissional e um esforço de profissionalização. Isso trouxe muita coisa boa, mas talvez tenha exagerado. Buscou-se muita eficiência e se perdeu a centralidade no enfrentamento da equidade, de dar mais a quem tem menos. Tem que trabalhar eficiência e resultados, mas com eixo na equidade. Essa busca fez com que fundações, especialmente as empresariais, passassem a formar seus próprios quadros ao invés de repassar recursos para pequenas organizações, para ter mais controle do resultado. Com isso, perdeu-se um pouco da equidade e do fortalecimento da sociedade civil e das organizações.

Escolhas – Você é fundadora do Cenpec e atua fortemente para melhorar a educação no Brasil. A educação pode ajudar a fortalecer a democracia e a atenuar as desigualdades no país? Há alguma evidência de que isso já esteja ocorrendo?

Setubal – Não existe exemplo no mundo de país que se tornou desenvolvido e com alto bem-estar que não tenha educação para todos, no mínimo, razoável. Se pegarmos dados do Brasil, a redução das desigualdades nos últimos 20 anos está ligada a um conjunto de políticas púbicas, como aumentos reais de salário mínimo, bolsa família e educação. Contamos com mais crianças no fundamental, mas ainda temos problemas no ensino médio e superior, embora esse último tenha aumentado muito o número de acessos. Dados econômicos mostram que uma pessoa formada com ensino superior tem salário muito maior. Com mais alunos no ensino superior, estamos mexendo nisso, mas ainda longe de ter educação de qualidade para todos. Entre os alunos mais pobres dentro da escola pública, o desenvolvimento quase não melhorou. Isso acontece porque não dá para ter a mesma política para todos com a nossa diversidade. Para termos um salto de qualidade, precisamos de políticas específicas. Municípios mais pobres e locais mais vulneráveis deveriam ter melhores professores e equipamentos. O enfrentamento da melhora da educação exige que nos debrucemos sobre esses dados e busquemos políticas para diferentes territórios. A periferia de uma grande cidade é diferente de um pequeno município. Precisamos buscar a universalização do direito a uma educação de qualidade.

Escolhas – Outra causa à qual está diretamente ligada, por conta da Fundação Tide Setubal, é a do empoderamento da periferia, com uma atuação ligada diretamente ao território. No caso da sustentabilidade, se discute muito a questão do agir localmente, pensando no global. Como a Fundação lida com essa questão?

Setubal – A missão da fundação é apoiar a justiça social e a redução da desigualdade entre as periferias e o centro das grandes cidades. Temos um trabalho de 10 anos em um território na Zona Leste de São Paulo e buscamos, a partir dessa experiência, pensar em como empoderar as periferias e o que isso significa em termos de política pública. Estamos desenvolvendo um estudo sobre o orçamento da cidade, analisando qual a parte que vai para as periferias. Atuamos no território, apoiando projetos de prestação de serviços (cozinha, esportes etc.), com oferta para a população, mas é um espaço também para discutir questões macros. Este ano, vamos estudar o impacto das creches no desenvolvimento infantil, comparando, no mesmo bairro, mães de criança na creche com mães que não têm acesso a creche. Desenvolvemos, junto com o Departamento de Urbanismo da Fundação Getulio Vargar, o projeto Plano de Bairro do Jardim Lapena, um plano de bairro participativo. Tem conselho gestor com nove organizações da comunidade e sua maior demanda é fortalecer a organização comunitária. Fizemos advocacy com secretarias municipais e subprefeitura e ele entrou no plano diretor do município, agora falta orçamento. É um exemplo de projeto que interessa ao bairro, mas tem tramitação política. Será o primeiro plano de bairro da cidade de São Paulo.

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