Este site utiliza cookies para colher informações analíticas sobre sua navegação. As informações dos cookies ficam salvas em seu navegador e realizam funções como reconhecer quando você retorna ao nosso website e ajudar nosso time a entender quais seções de nosso website são mais interessantes e úteis.
Entrevistas
Por Instituto Escolhas
28 abril 2022
5 min de leitura
Escolhas Entrevista – Cristiane Julião: “Ninguém está dizendo que é contra o uso dos conhecimentos tradicionais, mas enfiando goela abaixo é que não dá.”
Na tríplice fronteira entre Pernambuco, Alagoas e Bahia, pelo lado do rio São Francisco, situa-se o território do povo Pankararu, ao qual pertence Cristiane Julião. Geógrafa e doutoranda em Antropologia, ela possui um vasto currículo na defesa dos direitos indígenas, é cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e – como suplente de Alberto Terena, coordenador executivo da APIB – representa o Conselho Nacional de Política Indigenista na Câmara Setorial das Populações Indígenas, Comunidades Tradicionais e Agricultores Tradicionais, vinculada ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen).
No dia 24 de maio, Julião será uma das palestrantes convidadas do módulo 3 do curso Boas práticas para pesquisas que acessam patrimônio genético e Conhecimento Tradicional Associado, promovido pelo Instituto Escolhas. Nesta entrevista, ela compartilha um pouco da sua trajetória e visão sobre os desafios impostos aos povos originários quando estes demandam a devida valorização dos saberes ancestrais. “Eu acredito que é a partir da participação, escuta e inclusão que a gente consegue, realmente, pensar o acesso à justiça. É nessa perspectiva que eu procuro realizar o meu trabalho”, afirma.
Instituto Escolhas – Há uma ampla discussão em torno do conhecimento tradicional e de quem detém os direitos a ele relacionados. Como você entende esse conceito e como ele se relaciona com o patrimônio genético?
Cristiane Julião – A natureza é dona de si, é ela que nos detém. Nós temos a obrigação de cuidar dessa abundância que nos foi dada para que nada nunca nos falte. O conhecimento tradicional se define dessa forma: ouvindo a própria natureza, buscando essa conexão, interagindo com o meio. E é tradicional porque é atemporal. Não é um período que determina o tradicional, mas a longa jornada dessa conexão, desse costume, de se perceber como um pertencente e como um cuidador.
Absolutamente todo conhecimento tradicional está associado ao patrimônio genético, que a gente acessa quando pega qualquer folhinha para banho, limpeza espiritual, queda de cabelo, queimaduras, enfim, para qualquer que seja o tratamento.
Dentro do arcabouço legal do tema, está a Lei 13123/2015, que dispõe – entre outros coisas – sobre a chamada repartição de benefícios (RB), que é a divisão dos recursos obtidos a partir da exploração econômica de produtos desenvolvidos a partir do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Como isso ocorre hoje?
A lei recomenda acordos monetários e não-monetários e algumas empresas têm mantido essa discussão diretamente com as populações tradicionais, mas eu desconheço registro de populações indígenas sendo trabalhadas nessas RB. Embora seja mencionado que alguns saberes são provenientes de povos indígenas, a RB mesmo não acontece com esses povos. Apesar das fotos e publicações, em termos práticos, nenhuma empresa tem demonstrado interesse em trabalhar com povos indígenas.
Foi criado o Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios (FNRB), que já tem um valor captado, mas a gente não tem sintonia com a Secretaria Executiva para saber o valor real. Alguns setores da indústria ainda se mantêm ressabiados em relação ao FNRB porque, na verdade, seu Comitê Gestor nunca funcionou, tivemos poucas reuniões.
Você considera importante monitorar o uso de CTA por empresas e pesquisadores? É possível fazer isso?
Sim. Um dos caminhos é a rastreabilidade para saber onde o conhecimento foi adquirido e localizar o bioma onde esse patrimônio genético foi acessado. Um segundo passo é a própria legislação para além da Lei 13.123, pois existem outros instrumentos nacionais e internacionais que respaldam a presença e a participação dos povos indígenas em qualquer matéria que traga ou que sugira interesse dos próprios povos indígenas.
Até para construir um projeto de RB diretamente com as comunidades, monetária ou não-monetariamente falando, tem como fazer esse processo fluir, basta interesse, escuta e respeito à legislação para a gente construir acessos e usos em comum acordo. Tudo é possível. Ninguém está dizendo que é contra, mas enfiando goela abaixo é que não dá.
Qual é o papel da Câmara Setorial das Populações Indígenas, Comunidades Tradicionais e Agricultores Tradicionais da qual você faz parte?
A Câmara Setorial existe para acompanhar os processos que estão dentro do CGen [Conselho de Gestão do Patrimônio Genético]. A gente acompanha como um comitê consultivo para tudo que venha a ter incidência sobre os nossos interesses. A gente vinha construindo um diálogo mais próximo para entender a implementação da lei, dos processos que tramitam no IBAMA e no ICMBio, junto ao CGen, mas a gente perdeu esse contato e tem discutido muito pouco.
Em pleno Abril Indígena, muito se fala sobre o papel das populações indígenas para a conservação ambiental – a COP 26, realizada no ano passado, trouxe isso com muita ênfase. Ao mesmo tempo, os territórios e as populações indígenas são os mais ameaçados ou prejudicados por esse desmonte das políticas de proteção ambiental. O quanto esse futuro que a gente está buscando construir, baseado no uso sustentável da biodiversidade, depende de uma mudança sobre como o país lida com os povos originários e seus territórios?
Se a lei fosse respeitada e cumprida, muitas coisas não estariam acontecendo. Falando da luta dos povos indígenas, vou citar apenas dois instrumentos legais. Primeiro, o Estatuto do Índio – que reconhece a importância da demarcação territorial e estipula um prazo para o reconhecimento desses territórios. Esse estatuto não foi cumprido e é um exemplo de tutela. Quando atende os interesses econômicos, ele é resgatado, principalmente para citar aquele critério de indígena lá do Artigo 4º, que define quem é ou deixa de ser indígena.
Mas a parte sobre reconhecer e regularizar territórios indígenas não agrega em nada aos interesses econômicos porque, a partir do momento em que se reconhece um território, também se reconhece a autonomia desses povos. Você não pode mais invadir, tem que pedir licença, permissão ou validar outros instrumentos legais.
Outro instrumento é a própria Constituição Federal, que também reconhece a existência dos povos indígenas, a regularização dos territórios indígenas e a delimitação de tempo para regularizar esses territórios indígenas – isso, no entanto, nunca aconteceu. E, aí, eu chamo a atenção para a sociedade como um todo porque o Artigo 6º fala dos direitos sociais, educação, saúde, moradia, segurança, seguridade social, enfim, muitas coisas que estão lindamente lá e que a sociedade como um todo também não tem acesso. Mas não é um direito constitucional? A gente não paga imposto para isso? O dinheiro do imposto não deveria ser convertido para implementar os direitos sociais? E a gente não vê isso.
Então a lei existe para manter um controle, mas na verdade ela só é chamada na discussão quando é para atender a interesses do poder econômico e bélico. Ela acaba sendo um recurso de manutenção desse poder e controle.
Notícias relacionadas
Juliana Brandão é a nova mestra em Economia da Cátedra Escolhas!
Inscrições para a Cátedra Escolhas de Economia e Meio Ambiente estão abertas
Restauração florestal na Caatinga pode gerar R$ 29,7 bilhões e ajudar a remover 702 milhões de toneladas de carbono da atmosfera
Fernando Queiroz conquista título de Mestre com pesquisa sobre a bioeconomia do açaí em Abaetetuba