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Entrevistas
Por Instituto Escolhas
06 fevereiro 2019
11 min de leitura
Entrevista do Mês: Tatiane de Menezes
Adensamento das metrópoles – é possível?
O fenômeno do adensamento urbano refere-se a uma ocupação intensa, e muitas vezes desordenada, do solo. Os governos de várias metrópoles mundiais vêm estabelecendo medidas de planejamento para um adensamento urbano que respeite o meio ambiente e priorize a qualidade de vida dos cidadãos. Convidada a fazer parte da última mesa do Seminário Moradia e Expansão das Metrópoles Brasileiras, ocorrido em 22/01, a professora recifense de Economia Regional e Urbana da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista em análise do desenvolvimento regional Tatiane Almeida de Menezes conversou com o Instituto Escolhas sobre quais são os desafios das cidades hoje. Confira mais esta Entrevista do Mês!
Instituto Escolhas – O crescimento rápido (cerca de 50 anos) e vertiginoso da população urbana brasileira não foi acompanhado por políticas de planejamento das cidades levando a uma série de problemas (déficit habitacional, congestionamentos, poluição, segregação espacial, desigualdades de acesso à serviços e oportunidades, violência, dentre outros). Diante dessa tendência social que parece não dar sinais de redução, quais são os fatores históricos dessa inércia no planejamento urbano e porque não existe um pensamento de médio e longo prazo para pensar nossas cidades?
Tatiane de Menezes – De fato não há um compromisso político no Brasil com o planejamento urbano porque não há uma cultura de planejamento no país de modo geral, seja na saúde, na educação ou no planejamento urbano. Em se tratando desse último, por exemplo, o que a gente tem é o estímulo ao consumo desenfreado como se isso fosse a salvação da economia, sem se preocupar com as consequências que isso gera. Foi o caso do aumento do uso da motocicleta e de carros estimulado no início do governo Lula por exemplo, que reduziu os impostos para aquisição desses bens, gerando problemas sérios para a previdência social com o alto índice de acidentados, perdas de vida, invalidez. Não temos o hábito de fazer testes e simulações, de criar cenários possíveis em algumas cidades e gerar escala depois para o resto do país.
Como uma boa experiência eu posso citar a cidade de Curitiba, quando teve como prefeito o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, que promoveu um adensamento em vias públicas próximas de transporte coletivo. Em outros lugares as cidades vão crescendo e as administrações públicas vão atrás fazendo rodovias. O Brasil tenta seguir o modelo norte americano que favorece o uso de automóveis em grandes vias urbanas, onde cada um tem seu carro e não há preocupação com transporte público. Porém as cidades brasileiras em sua maioria seguem um padrão de urbanização europeu nos moldes da colonização com ruas estreitas e não comporta esse modelo. Na década de 1950 com o plano de Juscelino de trazer as grandes automotoras para o país – 50 anos em 5 – tivemos o avanço do domínio automobilístico, o abandono das ferrovias e a retirada dos trilhos dos bondes. Mas ninguém se preocupou em responder o que iriamos fazer com tantos carros. Nossos dirigentes pensam só no horizonte de quatro anos, não há políticas de Estado, mas sim de governos. Nossa sociedade é imediatista, precisa haver um pacto social em relação ao planejamento urbano de longo prazo. Precisamos criar campanhas educativas para a população que foi educada a pensar apenas no aqui e agora.
Instituto Escolhas – A expansão desenfreada das cidades traz problemas significativos não só para parte dos seus moradores, que enfrentam horas se deslocando pela cidade, como também para os gestores públicos municipais que precisam garantir infraestrutura e serviços para uma área cada vez maior. Muitos especialistas apontam o adensamento como uma das possíveis soluções para o problema da expansão urbana. Em sua opinião, quais são os benefícios de promover o adensamento nas grandes cidades brasileiras? O que significa adensar do ponto de vista do bem-estar das pessoas e também da gestão pública?
Tatiane de Menezes – O adensamento é uma saída interessante porque é democrático. Diminui muito o preço do metro quadrado na região em que ele ocorre e aproxima as pessoas do trabalho e do lazer e isso é uma vantagem. Além disso, ele possibilita o acesso a equipamentos, transporte e serviços públicos em áreas onde já existe infraestrutura implantada, o que reduz custos para o setor público. O adensamento rompe com esse modelo estadunidense de urbanização que promove moradias da classe média alta isoladas em bairros distantes que utilizam rodovias e carros para acessar as cidades.
Portanto, esse procedimento, realizado de forma pensada e planejada, tem muitas vantagens, mas isso precisa ser atrelado à mobilidade urbana, pois quando você adensa, você coloca muitas pessoas em uma mesma área, ocorre uma demanda por serviços de transporte público de qualidade. Se todo mundo começar a querer usar seus carros, o tempo de deslocamento casa-trabalho vai aumentar muito se tornando insustentável.
Instituto Escolhas – Quais são os possíveis conflitos que podem surgir a partir desse processo? Fale um pouco sobre as consequências negativas do adensamento. Na sua opinião, porque essas consequências negativas acabam prevalecendo? É possível citar algumas medidas para que isso seja feito de modo adequado? Ou até experiências (nacionais e internacionais)?
Tatiane de Menezes – O grande exemplo internacional é a cidade de Amsterdã (Holanda), que realizou adensamento sem destruir o patrimônio histórico da cidade promovendo a integração entre diferentes modais de transporte de modo qualificado. As pessoas de diferentes grupos sociais devem poder escolher entre diferentes modais para realizar sua locomoção. Na Europa o transporte é fácil, bom e barato, com modais urbanos custeados pelo setor público e o privado, afinal lá eles já entenderam que se você quer um trabalhador produtivo, você não pode deixar essa pessoa passar 2 horas em um deslocamento. A qualidade de vida é fundamental para se aumentar a produtividade das pessoas. Posso citar ainda Baltimore e Portland nos EUA como exemplos.
Como tudo na vida, o adensamento também tem um outro lado, pois onde antes você tinha cerca de 10 a 20 famílias, de repente passa a ter 400 famílias vivendo na mesma área. Não tem estrutura de saneamento que sobreviva a isso, por isso planejar é fundamental. Onde podemos colocar prédios altos? Onde devemos mesclar isso? São muitas variáveis. Respeitar o clima e a corrente de ventos, por exemplo. Mas ainda há muito medo do adensamento porque ele pode piorar a qualidade de vida de quem vive muito bem, ou seja, trata-se de um medo de perder privilégios, de sair da sua zona de conforto. As pessoas das classes sociais mais altas não querem adensar e isso ocorre porque historicamente ele sempre foi feito sem planejamento em relação a modais de transporte, saneamento, temperaturas da cidade, ou seja, sempre acompanhado pela queda nos padrões de vida das classes mais ricas. As pessoas agem de modo racional e é difícil mudar certos padrões de pensamento. Um exemplo é o hábito de se fazer compras do mês. Isso é fruto da memória inflacionária da economia brasileira de tempos remotos, mas que ainda hoje deixa reflexos.
Instituto Escolhas – Com base em um conceito que você pesquisa (índice de felicidade urbana e economia da saúde), quais são os principais impactos (econômicos) da urbanização não planejada que desafiam os gestores públicos das grandes cidades/metrópoles brasileiras?
Tatiane de Menezes – São vários aspectos. Primeiramente preciso destacar que falta de saneamento tem um impacto direto na saúde da população e com o crescimento de uma demanda por esse serviço em determinada região, isso vai naturalmente sobrecarregar essa infraestrutura, pensada para atender inicialmente uma população menor. Outro fator que devemos levar em consideração é que os longos deslocamentos obrigam os trabalhadores a dormir menos. Quanto mais longe você mora, menos você dorme. Diminui a qualidade e a quantidade do sono. Além disso, há um enorme desgaste físico e mental desse trabalhador ou trabalhadora. Também o acesso aos atendimentos médicos (postos de saúde) fica precário em virtude da alta demanda. Isso impacta na expectativa de vida dos idosos por exemplo. Os filhos menores quase não convivem com os pais, que passam muito tempo fora de casa, são crianças mais adoecidas em virtude desse fator, muitas delas brincam em meio a esgoto a céu aberto. É comum verificarmos moradias insalubres em favelas de grandes metrópoles como Rio de Janeiro e Recife, inseguras também do ponto de vista de incêndios. É uma tragédia humana.
Instituto Escolhas – Então, na prática, a condição de vida das mulheres é muito pior que as dos homens?
Tatiane de Menezes – De fato, precisamos falar sobre isso sim. O trabalho da mulher, sobretudo a divisão desigual do trabalho doméstico que recai todo sobre ela, impacta muito as condições de mobilidade social que ela poderá ter na vida ou não. Na nossa cultura a mulher é mais responsável pela família que o homem. Em função disso, as mulheres tendem a procurar emprego próximo de casa, o raio de possibilidades das mulheres para se sustentar e ter autonomia financeira é muito menor nesse sentido. O homem pode ir mais longe, conquistar salários maiores e ter uma vida melhor. Isso é um preconceito urbano social, pois não há os mesmos direitos de ir em busca dos melhores empregos, as mulheres se moldam ao bairro em função da família. Não há mobilidade social para a mulher periférica, que não pode investir em sua qualificação profissional, obrigando-as a uma condição eternamente subalternizada.
Instituto Escolhas – Hoje é muito recomendada a diminuição da emissão de poluentes atmosféricos em áreas urbanas, como por exemplo, na cidade de São Paulo, para evitar o que chamamos de ilhas de calor urbano, promovidas em grande parte pelo alto fluxo de veículos e também a presença de concreto e asfalto. Você acredita que uma torre de 40 ou 50 andares nos centros urbanos favorece o aquecimento do seu entorno? Além do plantio de árvores e a criação de espaços verdes nas grandes cidades, o que mais é possível ser feito para mitigar a formação dessas ilhas?
Tatiane de Menezes – Como economista, acredito que antes de adensar temos que fazer simulações, testes. Calcular o quanto de pessoas e carros vão ser colocados na rua, questionar o que vai acontecer com o clima dessa região e estabelecer previsões das consequências de uma determinada proposta de adensamento. Isso evita que daí para frente as coisas piorem muito. Sou totalmente à favor de adensar, mas tem que planejar e usar as tecnologias disponíveis hoje para fazer essas simulações. Isso passa muito pelo plano diretor da cidade. Em Recife, onde eu nasci e resido atualmente, aconteceu um problema sério que foi o Ocupa Estelita, galpões portuários imensos abandonados pela prefeitura, que passou por um processo de leilão duvidoso onde imobiliárias adquiriram o terreno para construir espigões. Verificou-se que isso iria retirar a ventilação da cidade em virtude da barreira de prédios. A sociedade civil se mobilizou para não deixar isso seguir adiante. É importante dar outros usos para esse terreno baldio? Sim. Muito. Mas o poder público tem que saber fazer com planejamento urbano adequado, entendendo as consequências para o resto da cidade. Do contrário o privado se apropria do público sem o menor constrangimento como vimos no filme O Som Ao Redor (2012).
Instituto Escolhas – Então já vamos entrar em nosso próximo tópico. Quais são as especificidades de Recife, uma cidade/metrópole do nordeste brasileiro que também experimenta a expansão urbana e seus desafios? Você poderia falar um pouco sobre como está o planejamento urbano de Recife, dos marcos regulatórios e da participação social nesse processo?
Tatiane de Menezes – Recife é uma cidade que cresce ao redor do rio Capibaribe, portanto em épocas de cheias a cidade sempre sofreu muito com alagamentos e enchentes do rio. A região de Boa Viagem só surgiu nos anos 70 e não passou por esse problema, mas o que aconteceu com a orla marítima é uma aberração. Às 15h ou 16h você já tem sombra em toda a faixa de areia. A especulação imobiliária cresce de forma descontrolada à beira mar. Pernambuco cresceu muito nos anos 1990, muita gente começou a ganhar dinheiro e a região do Capibaribe se tornou uma área desejada, pois é onde todo mundo quer morar, mas a cidade de Recife tem uma região de 218 km quadrados (Censo 2010) e moram 1 milhão e 700 mil habitantes. Essa ocupação foi autofágica, desordenada, a cidade foi consumida por prédios e todo o equipamento urbano foi consumido nesse adensamento muito rapidamente, o tempo de deslocamento médio do cidadão recifense está equivalente a um paulistano. Contudo, esse movimento teve vantagens também. A classe C de Recife não está tão longe assim do centro da cidade, as classes A e B se concentraram em Boa Viagem e próximo ao Capibaribe, os morros continuam sendo habitados, não expulsou as pessoas mais pobres para muito longe apesar de tudo. Mas para quem lá vivia nas décadas anteriores a qualidade de vida piorou. Então, é preciso pensar em diferentes modais de transporte para a cidade e tirar o custo desse transporte público do cidadão, levando para a iniciativa privada.
Instituto Escolhas – Recife, assim como Santos, são cidades bastante vulneráveis em relação ao avanço do mar. A mudança do clima tende a acentuar os problemas já existentes nas cidades, como as inundações, deslizamentos de terra, ondas de calor e limitações no suprimento de água potável. Você fala muito da importância de se evitar as zonas de calor no planejamento da cidade de Recife, por exemplo. Como você vê o tema da adaptação à mudança do clima perpassar o debate sobre planejamento urbano? Há aderência dos especialistas?
A aderência é muito pouca. Esse é um tema pouco pensado por nossos gestores no Brasil, mas no mundo a questão do aquecimento das cidades é mais relevante. Uma boa parte desse aquecimento passa pelo adensamento e pela quantidade de concreto e isso precisa ser inserido no discurso de nossos políticos. As pessoas estão buscando alternativas viáveis para esse adensamento, diminuindo as consequências climáticas, sendo mais sustentável. Como somos um país tropical isso é uma prioridade.
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