Roraima não possui nenhuma mina de ouro legalizada, mas o Monumento ao Garimpeiro, uma estátua de sete metros de altura em sua capital, Boa Vista, deixa poucas dúvidas do entusiasmo local sobre o assunto.
A cada dia, frotas de carros, caminhões, barcos, pequenos aviões e até helicópteros transportam homens com suprimentos para a mineração de e para garimpos ilegais em reservas indígenas no estado. Alguns dos veículos carregam embalagens de mercúrio, a tóxica substância prateada usada pelos garimpeiros para o processamento do ouro.
No final de junho, a Polícia Militar parou um carro com homens que se dirigiam a Boa Vista voltando de uma garimpo ilegal no distrito de Alto Alegre, onde fica parte da reserva indígena ianomâmi. Relatos apontam que dias antes dois ianomâmis teriam sido mortos a tiros e vários outros feridos por garimpeiros na região.
Ao revistar o carro, os policiais encontraram munições, balanças digitais e duas garrafas com 10 kg de mercúrio.
O Brasil não produz mercúrio. E, mesmo antes de 2017, quando o país ratificou a Convenção de Minamata, tratado internacional para proteger a saúde humana das emissões de mercúrio, as vendas foram oficialmente proibidas e as agências federais mantiveram um controle rigoroso sobre as importações.
Mas os últimos anos viram um aumento da mineração ilegal em Roraima, especialmente na reserva ianomâmi. Segundo estudos do governo, quase todos os garimpeiros da Amazônia brasileira usam mercúrio.
A substância normalmente é contrabandeada de países vizinhos ou importada legalmente para uso na produção industrial, e depois canalizada para redes clandestinas.
Estima-se que milhares de garimpeiros estejam extraindo ouro das reservas indígenas de Roraima, destruindo habitats e colocando em perigo as populações locais, risco que aumentou com a possibilidade de contaminação de indígenas pela Covid-19.
As operações de combate à mineração ilegal realizadas pela Polícia Federal, pelas agências de fiscalização ambiental e pelas Forças Armadas levaram a prisões e grandes apreensões de ouro e outros bens, mas falharam em deter seu crescimento.
Segundo fontes ouvidas pelo InfoAmazonia, a maioria das pessoas que fazem o contrabando de mercúrio para Roraima trabalha em nome de grandes investidores ilegais de mineração.
Máquinas utilizadas na mineração ilegal, como plataformas de dragagem, exigem investimentos iniciais mínimos de R$ 150 mil e requerem grandes quantidades de gasolina para funcionar constantemente. Os proprietários muitas vezes possuem um negócio legítimo, como posto de gasolina, hotel, supermercado.
É impossível obter as cifras exatas da produção de ouro. Estima-se, porém, que milhares de quilos do metal sejam anualmente extraídos e traficados ilegalmente de Roraima. O processo é possibilitado pela pobreza do estado, por suas fronteiras porosas e pelas agências de fiscalização sobrecarregadas, mas também por autoridades locais, empresários e investidores.
“Há uma tolerância social enorme na sociedade de Roraima. O garimpeiro ilegal não é visto como um criminoso”, disse Alisson Marugal, procurador da República no estado.
É um risco que compensa. Os preços globais do ouro alcançaram níveis recordes, em torno de US$ 62 mil o quilo (em 4 de setembro). Enquanto isso, as agências de proteção ambiental e indígena foram prejudicadas pela pandemia e pela interferência do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que, durante a campanha eleitoral, já prometia afrouxar regras ambientais e legalizar a mineração em terras indígenas.
Durante décadas, garimpeiros ilegais de todo o Brasil se aglomeraram neste El Dorado amazônico na esperança de encontrar sua fortuna. Na década de 1980, cerca de 40 mil garimpeiros invadiram as terras ianomâmi, levando à morte de entre 15% e 20% da tribo, por doenças e violência. Os garimpeiros acabaram expulsos em 1992, quando a reserva foi oficialmente demarcada pelo governo brasileiro, embora sempre voltassem.
Segundo fontes ouvidas pelo InfoAmazonia, A Guiana é a principal fonte de mercúrio ilícito em Roraima. Em 2019, o país vizinho importou 34,5 toneladas de mercuírio para sua mineração artesanal.
A densidade da substância a torna um produto fácil de contrabandear —uma garrafa de 2 litros pode conter até 20 kg de mercúrio.
Parte desse contrabando é levado para outras regiões. Em 2019, a polícia rodoviária de Roraima, prendeu um homem com 150 kg de mercúrio em quatro garrafas (avaliado em cerca de R$ 90 mil) e 35 mil carteiras de cigarros. Ele disse ter saído de Boa Vista e que transportava o mercúrio para Manaus. A substância depois iria para Itaituba, no Pará, o mais importante pólo de mineração ilegal da Amazônia.
Outra grande fonte do mercúrio que entra no Brasil é a Bolívia, segundo maior importador mundial depois da Índia —foram 196 toneladas em 2018, segundo estimativas do Banco Mundial.
Os estados de Rondônia e Mato Grosso, que compartilham fronteiras com a Bolívia, têm extensas indústrias de mineração legal e ilegal, bem como acesso rodoviário à Amazônia.
O mercúrio muitas vezes chega aos garimpos remotos por meio de pequenas aeronaves e companhias aéreas que operam em Roraima, que receberam contratos públicos milionários e também têm sido investigadas por operar na logística aérea da mineração ilegal.
“Sem logística você não tem garimpo”, disse o o procurador Marugal.
O mercúrio também tem grande variação de preço. Em Roraima, é possível comprar o quilo por R$ 500, segundo uma fonte local. O Inventário Nacional de Emissões de Mercúrio de 2018 —o estudo mais abrangente no país sobre seu uso na mineração artesanal— avaliava entre R$ 600 e R$ 1.200 o quilo de mercúrio, dependendo da região. Realtório da ONG Instituto Escolhas aponta que a substância alcança o valor de R$ 1.500 por quilo na região do rio Tapajós.
O inventário concluiu ainda que algo entre 18,5 e 221,5 toneladas de mercúrio foram lançadas no ambiente brasileiro em 2016, cerca de dois terços das quais vão para a atmosfera e o restante, para solo e rios.
Estudo apresentado em audiência pública na Câmara dos Deputados em 2019 relacionou a paralisia cerebral em crianças indígenas em áreas de mineração à exposição pré-natal ao mercúrio.
No mesmo ano, uma pesquisa da Fiocruz descobriu que 56% das mulheres e crianças testadas na reserva indígena inanomâmi tinham níveis de mercúrio acima dos limites estabelecidos pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
Esta reportagem foi apoiada pelo Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center e pelo comitê nacional da Holanda da IUCN (Internacional Union for Conservation of Nature). A investigação foi conduzida em quatro países durante um ano. O trabalho foi feito em parceria com jornalistas da Armando.Info na Venezuela e Fantástico (TV Globo) no Brasil. Para saber mais veja: mercurio.infoamazonia.org